Acompanhar à guitarra a própria canção de amor
Luísa Amaro recorda Carlos Paredes no dia em que se inauguram, com um concerto no São Luiz, as festividades do centenário do músico português.

Entusiasmada com as celebrações do centenário de Carlos Paredes, a guitarrista Luísa Amaro, que foi a sua última acompanhante no palco e na vida, recorda os pequenos e grandes momentos que marcaram 20 anos de amor, companheirismo e muita admiração.
“Alguma vez o Carlos Paredes imaginava que a sua música pudesse vir a ser tocada pela Orquestra Metropolitana de Lisboa? Não!”, assegura a guitarrista e compositora Luísa Amaro.
“Nunca imaginou, ou imaginaria, que o som de uma guitarra pudesse ser transposto para orquestra, ia ficar espantadíssimo”, revela, referindo-se ao concerto que, hoje, 5 de fevereiro, no Teatro São Luiz, inaugura as festividades do centenário do músico português.
E acrescenta: “O trabalho é tão bom, aliás, como tudo o que se tem feito, que acho que ia mesmo ficar sem fala”. Se o diz Luísa, primeiro aluna, depois companheira na arte e na vida de Carlos Paredes, então é porque é verdade.
Ao longo de 20 anos, os dois partilharam, a par do amor pela música, aquele que sentiam um pelo outro.
Reservado, o autor da banda sonora de Verdes Anos, conta Luísa, “nem se dava a pensar que a sua música tivesse tanto valor que justificasse perder tempo na orquestra. É desconcertante, mas se ele estivesse aqui era assim que lhe respondia”.
Um “menino grande” sempre agarrado à guitarra
“Ele” não está aqui há 20 anos. Exatamente os mesmos que passou ao lado de Luísa, em dias pautados por “conversas interessantes acerca de tudo”, pela partilha de “reflexões e pensamentos de uma grande profundidade”, ensinamentos constantes e, é claro, muita música.
“Estava sempre agarrado à guitarra a tocar, ou então a preparar concertos. Eu podia estar a fazer outras coisas fundamentais da vida do dia-a-dia, a passar a ferro, a cozinhar, e ele lamentava-se ‘devias era estar a tocar comigo”.
Era a queixa de “um menino grande” que, após a fase de deslumbramento inicial, Luísa descobriu atrás de alguém que define como “uma pessoa encantadora, com um lado genial”, “um mestre, mais do que um professor”.
“Comecei a perceber que era necessário pôr-lhe ali uma certa ordem na vida, registar os concertos, fazer tudo isso”.
“Parte da minha missão de vida foi essa. Ser apoio para uma pessoa que sozinha ou era um herói ou era um mártir. Se calhar foi por isso que eu para cá vim, não é? Cumpri o melhor que pude. E fico satisfeita e orgulhosa”
O amor entre os dois, que Luísa sublinha nunca ter sido uma “paixão avassaladora”, mas sim “um carinho muito grande que se foi construindo”, nasceu sem pré-aviso e sem deixar memória precisa quanto ao dia ou ano da sua chegada.
O primeiro encontro
Conheceu o mestre tinha ela cerca de 19 anos e estudava no Conservatório de Música de Lisboa.
Um amigo mais velho estava a aprender a acompanhar Carlos Paredes e perguntou-lhe se queria conhecer o guitarrista, convidando-a para ir a um dos ensaios.
“Estávamos a tocar e o Carlos Paredes, até por brincadeira, disse: ‘Olha, vê lá se me consegues acompanhar isto’. Achei que aquilo era fácil, um pouco com a inconsciência de quem é novinho”.
Dois meses mais tarde, Paredes precisava de alguém que o acompanhasse à guitarra, mas, por coincidência, nem Fernando Alvim, o seu braço direito, nem o amigo de Luísa podiam.
“Telefonou-me e respondi que podia aprender seis músicas para tocar com ele na antiga Altamira. Ele achou maravilhoso poder-me ensinar rapidamente tantas músicas”.
Os poucos anos de conservatório que levava consigo faziam da nova aluna uma intérprete livre de estruturas, técnicas de execução e hábitos demasiado rígidos. O resto é história.
Música após música, concerto após concerto, digressão após digressão, Carlos e Luísa fortaleceram uma relação rara e preciosa onde as fronteiras entre interpretação, companheirismo e amor partilhavam muitos pontos em comum.
“Havia uma boa alma por detrás daquela música”, comenta Luísa, recordando um episódio ocorrido antes de um concerto no Palácio de Queluz.
“Faziam questão que o Carlos Paredes estivesse na sala de jantar com os convidados, mas ele queria comer na cozinha, onde a era o rico menino da Dona Lina, a cozinheira. Ele sentia-se resguardado, mimado, agarrava na guitarra e começava a ensaiar na cozinha. Era neste lugar de carinho que ele se sentia bem”.
O sucesso, o nervoso miudinho e a rainha de Inglaterra
Momentos verdadeiros como este eram essenciais na vida acelerada que, a certa altura, o casal levava. Sobretudo depois de Danças para uma Guitarra, com o ballet Gulbenkian, que espoletou muitos concertos no estrangeiro e solicitações constantes.
“As pessoas começaram a perceber que tinham um bom substituto, não da voz da Amália, mas de uma portugalidade que não se conhecia, só que, sendo instrumental, toda a gente compreendia”.
O sucesso artístico jamais retirou ao mestre a consciência da responsabilidade que é subir a um palco.
“Antes de ir tocar, e podia ser no Royal Albert Hall ou aqui ao virar da esquina, ia sempre à casa de banho”, conta Luísa divertida, sublinhando, “estava nervoso”.
“O pior é que ele ia à casa de banho e nunca mais de lá saía, era todo um ritual desgraçado. E eu cá fora com o diretor de palco e os organizadores a dizer-lhes que o melhor era estarmos sossegados se não ele voltava lá para dentro outra vez”.
O ritual sistemático e caricato, que Luísa guarda agora com saudade, ocorreu até quando a Rainha de Inglaterra veio a Portugal.
Começo a ouvir o Rogério Paulo, grande homem do teatro, com aquele vozeirão que ele tinha, a gritar, ‘Paredes, mas onde é que tu estás, Paredes?’. Eles eram muito amigos, mas o Rogério só dizia, ‘dá-me vontade de lhe dar uma tareia’, porque não se podia fazer esperar a rainha.
Histórias como esta, Luísa tem às dezenas, mas não são precisas mais para resumir a alma que fazia soar as cordas da guitarra no coração do público.
Celebrar o legado
Carlos Paredes passaria os últimos 11 anos de vida acamado num lar. Enquanto o mundo perdia o músico, Luísa perdia o homem.
Visitava-o todos os dias, no quarto onde a Antena 2 tocou até ao último momento. “Foi muito doloroso. Depois a vida vai-se fazendo, de outra maneira”.
Este mês, essa outra maneira talvez passe por celebrar a memória daquele que tanto deu à musica portuguesa, ouvindo-o através dos instrumentos e interpretações “de gente nova e dos da velha guarda” juntos no palco da Aula Magna da Universidade de Lisboa, para o concerto comemorativo do centenário do músico, a 16 de fevereiro.
“É assim que a música continua e ainda bem. E estamos a celebrar o Carlos Paredes e, como costumo dizer, tão cedo não se vão realizar mais 100 anos”.
Programa das celebrações do Centenário de Carlos Paredes: