Cinco dias na estrada com Capitão Fausto
Em 2025, os Capitão Fausto estrearam-se internacionalmente, com 6 concertos, em Madrid, Barcelona, Amesterdão, Paris e Londres. Juntei-me nas últimas 2 cidades e conto como foi. Dentro e fora de palco
“Já tenho o que queria! DJ Bife a comer uma ostra”, exclama Domingos Coimbra, guardando o telefone no bolso e abrindo caminho através da multidão que, debaixo de um sol escaldante, espera a sua vez para degustar uma das dezenas de iguarias gastronómicas disponíveis nas bancas do Broadway Market, no bairro londrino de Hackney.
Avançando em direção a London Fields, à sua frente, Salvador Seabra [DJ Bife] e Diogo “Horse” Rodrigues riem-se ao recordar momentos semelhantes, vividos durante outras viagens feitas em conjunto, memórias construídas à mesa de restaurantes de beira de estrada, bares de aldeia e bastidores de salas de concertos.
Desta, com certeza, jamais irão esquecer o momento em que, nem há 24 horas, “por causa de um stresse burocrático”, julgaram todos que não iriam atravessar a fronteira entre França e o Reino Unido, correndo o risco de terem de adiar os dois últimos concertos da primeira digressão europeia dos Capitão Fausto, a banda que Salvador Seabra, Domingos Coimbra, Tomás Wallenstein, Manuel Palha e Francisco Ferreira fundaram há 15 anos.
“A main quest é sempre tocar, mas é a side quest que fica na memória. O concerto é o momento central, mas tudo aquilo que acontece entre pontos, as histórias e aventuras que temos, as festas onde vamos, as pessoas com quem falamos, o mal que dormimos, o que se diz na carrinha, é o que traz as vivências da banda e contribui, de certa forma, para as próximas coisas que acabamos por fazer”, assegura Domingos Coimbra.
Salvador e Horse, um dos fundadores da editora Cuca Monga e que, desde 2021, é também técnico de frente dos concertos da banda, concordam.
Caminhamos num silêncio que não ouso quebrar. Nele cabem mais memórias do que as que seria possível resumir nos 900 metros que nos separam do pub The Victoria Dalston, onde os restantes membros da equipa nos esperam para começarem as montagens de palco.
Porém, não consigo deixar de pensar que graças à main quest que, em 2011, escolheram para as suas vidas, as pessoas que brindam comigo à porta do pub acabaram por ser os responsáveis pela criação da banda-sonora das side quests das vidas de tantos outros da sua geração.


Fomos à praia, saltámos sessões de estudo e dançámos até de madrugada ao som de Teresa, Ideias e Santa Ana, apaixonámo-nos a ouvir versos que falavam de amizade, fizemos amigos a ouvir outros que, afinal, falavam era de amor, fomos de Erasmus e voltámos prontos a aceitar que estava na hora de crescer para não “morrer debaixo das saias da mãe”, caíram-nos lágrimas de alegria com Alvalade Chama por Mim, de tristeza com Boa Memória e de resignação com Amanhã Estou Melhor.
Quem sabe se não caíram todas ao lado e nos versos errados. Mas que importa? Mais do que o lugar onde nasceu cada uma das canções dos Capitão Fausto, foi a forma como ecoaram, e ainda ecoam, em quem as ouve, que fez delas a companhia de uma geração.
Crescer ao ritmo da amizade
Ano após ano, Tomás, Salvador, Manuel, Domingos e Francisco [que saiu da banda em 2023] foram-nos dando as frases e os ritmos que, aos vinte e poucos anos, nos faltavam para explicar a vertigem que é saber-se adulto à beira de um mundo diferente daquele que esperávamos, mas desejoso que fizéssemos parte dele.
Quase 15 anos após o lançamento do primeiro álbum, Gazela, a vida, como as melodias, deixou de ser puramente rock, ganhou sonoridades novas, mais cuidadas, com mais instrumentos e harmonias.
Aos 34 anos, há que fazer uma pausa nas montagens do palco para falar por videochamada com as mulheres, namoradas e filhos, que estão em Lisboa, saber cantar sobre a perda mas de pazes feitas com a mágoa, aprender, como diz Manuel, “a ouvir os detalhes das coisas”.
O que não mudou desde a primeira vez que tocaram juntos, em 2010, no casamento de um tio de Tomás, foi, asseguram todos, “a forma como nos desafiamos a fazer coisas novas, o controlo que temos na maneira como o espetáculo acontece e a preocupação em fazer um bom concerto, independentemente de ser para nove, 200 ou duas mil pessoas”.
“Acho que não estaríamos a fazer isto, passados quase 15 anos, se já não sentíssemos o encanto que é estar num palco e viver o momento em que a música, e tudo aquilo que fizemos, culmina com as pessoas que estão lá para querer ouvi-la, algo que, felizmente, tem sido uma constante na nossa vida”, comenta Domingos. “A vontade de fazer e a amizade prevalecem. Creio que não trabalhava com eles há 11 anos se não fosse assim”, acrescenta Horse.
A alegria de Paris




“A vontade de fazer e a amizade” parecem ser os alicerces do sucesso alcançado pela banda. Sempre com gente “lá para querer ouvi-la”, como dizia Domingos, o grupo cresceu dentro e fora de palco, lançando-se finalmente, em 2025, na sua primeira digressão europeia – um concerto na MEO Arena, a maior sala de espetáculos do País, foi, entretanto, anunciado para o dia 24 de janeiro de 2026.
Nos meses de abril e maio deste ano, os Capitão Fausto subiram aos palcos da Sala El Sol, em Madrid, da Sala Apolo, em Barcelona, do Melkweg Amsterdam, em Amesterdão, do Point Éphémère, em Paris, e do The Victoria Dalston, em Londres, num total de seis concertos, cinco dos quais completamente esgotados.
Juntei-me a eles a 8 de maio, em Paris, precisamente o único local onde ainda havia 17 bilhetes por vender. Ninguém diria, no entanto. À medida que o sol mergulha no Canal de Saint-Martin e a tarde se pinta de tons dourados, cada vez mais pessoas vão chegando ao Point Éphémère. Ocupam as mesas corridas junto da entrada e levantam copos de cerveja fresca, brindando ao concerto que, para muitas delas, já neste simples gesto, lhes traz um sabor a casa.
Acabados de chegar de Amesterdão, acompanhados de Horse e do manager Ricardo Coelho, Salvador, Tomás, Domingos e Manuel recebem efusivamente o nosso grupo de amigos.
Há saudades a matar de quem se vê pouco, por morar em Paris há alguns anos, como Sofia e Inês, que conhecem desde os tempos do Liceu Francês, e agradecimentos a fazer aos sempre presentes, que voaram de propósito de Lisboa, como Haley e o namorado, Luís, um dos responsáveis pela editora Cuca Monga.
Contam que “Amesterdão foi o melhor concerto até agora”, que o público veio das mais diversas cidades dos Países Baixos, “às vezes, fazendo horas de caminho”, e que esteve do lado da banda “desde a primeira nota”. No entusiasmo do relato, porém, pressente-se a dúvida sobre o que lhes reserva a noite de Paris.
Não têm nada a temer. Mal as luzes se apagam e se ouvem os primeiros acordes de Boa Memória, mais de duas centenas de pessoas começam a cantar em coro. “Sala cheia, coração cheio. Obrigado”, agradece Domingos. A energia mantém-se a mesma ao longo dos restantes 18 temas, acontecendo, inclusive, o primeiro moche da digressão, durante Santa Ana.
“A casa ardeu/ Ninguém parou de dançar.” Colado ao palco, Norberto, de 45 anos, canta e dança mais do que o resto da primeira fila toda junta. Há 30 anos em Paris, filho de emigrantes portugueses, descobriu a banda quase por acaso, através de uma notificação da aplicação de venda de bilhetes Dice.

“Foi um azar, porque comecei a ouvi-los anteontem, mas também uma sorte enorme, porque adorei o que ouvi e vim logo para a primeira fila. É a cultura que nos dá vida e nos salva, hoje saio daqui com mais energia para ir para a frente. Já fui segui-los no Instagram e inscrevi-me no site para os ir acompanhando”, conta Norberto, com um álbum debaixo do braço.
Já Vasco e Catarina, de 27 anos, vieram de propósito de Lisboa para assistir ao concerto daquela que é a banda preferida dele e a banda portuguesa preferida dela. Uma das coisas de que mais gostaram foi o tamanho intimista da sala, “em comparação com sítios como o Coliseu, a Culturgest ou o Campo Pequeno”, e o facto de Domingos ter descido do palco para tocar um solo mesmo ao seu lado.
A vida para lá do palco
Já depois de o público dispersar, lançamo-nos na famosa side quest. A noite quente de maio convida a um passeio de bicicleta. Guiados por Inês e Sofia, pedalamos até ao espaço de concertos e discoteca La Gare – Le Gore, seguimos para o bar Connectable, onde, sentado a um piano disponível para utilização dos clientes, um homem cego oferece, segundo Salvador, “das melhores interpretações” que se poderia pedir de diversas canções, e terminamos a cantar La Bamba num bar de karaoke.
Nas conversas entre um poiso e o seguinte, forjam-se amizades com desconhecidos, aos quais contamos o que viemos cá fazer, apenas para descobrir, mal as palavras nos saem da boca, que o que viemos cá fazer foi afinal muito mais do que subir a um palco, escrever uma história ou ocupar-nos do som de um concerto.
Viemos carregar a Subida Infinita de cada um até um lugar a quilómetros de casa, onde, além de os vazios e as ausências soarem mais a música e menos a silêncio, podemos admitir que, lá no fundo, “toda gente anseia por dizer já passou” e por descansar, nem que seja por um instante, à sombra do tempo em que tudo em nós parecia infinito e inabalável.



Subida infinita
Três dias e o tal “stresse burocrático” mais tarde, em noite de derby lisboeta, chegamos a Londres. Também na capital inglesa o sol decidiu brilhar com uma intensidade fora do normal. Após a manhã passada entre as ruas de Hackney e o relvado de London Fields, é tempo de montar o palco para os concertos dos dois dias seguintes.
A sala de teto baixo, revestida de madeira escura, põe à prova a imaginação de quem entra. “É engraçado que não tocávamos em venues tão pequenas há muitos anos”, comenta Tomás Wallenstein, com alguma nostalgia na voz. Caberão 250 pessoas num espaço tão exíguo?






Sim. Não só caberão 250 pessoas como farão a casa vir abaixo: cantam os parabéns a Manuel Palha, que faz anos no dia do primeiro concerto, dançam do princípio ao fim, independentemente de a sensação térmica ser de 40 graus centígrados, e pedem “só mais uma” vezes sem conta.
Até mesmo David, que não fala uma palavra de português e conheceu a banda graças à namorada portuguesa, que lhe vai traduzindo alguns versos das canções. E tudo se repetirá, com o dobro da energia, na noite seguinte. Longe vai o dia em que os Capitão Fausto rumaram às Caldas da Rainha para tocar para nove pessoas, quatro delas amigos vindos de Lisboa.
“Foi provavelmente a vez em que vi este espaço mais cheio”, comenta, impressionada, Lucy, técnica de som do The Victoria Dalston. “As pessoas costumam ficar no meio da sala e as bandas têm de as chamar para avançar, mas, com eles, foi logo tudo para a frente e fartaram-se de dançar.”
“A proximidade com o público traz uma energia mais eufórica, as pessoas sentem o concerto de uma forma diferente e nós também”, explica Horse. É o caso de Mário, um fã de 29 anos, há cinco a viver em Londres, que marcou presença no The Victoria em ambas as noites.
“Além do pessoal a cantar a plenos pulmões algumas das músicas, do que mais gostei de ver foi a atenção que o Salvador, o Manuel, o Domingos e o Tomás dão uns aos outros, em palco. Na banda todos têm o seu espaço para brilhar, como num grupo de amigos, sem egos à mistura.”
A adesão do público e o sucesso dos concertos têm gosto a vitória em dose dupla por terem sido organizados e produzidos recorrendo a uma equipa de seis pessoas, a “prata da casa”, como lhe chamam, e a uma grande dose de boa vontade.
“Digressões como esta, com muitos desafios e concertos que não sabemos como vão correr, são coisas que temos muito interesse em fazer, porque põem-nos fora de pé e geram-nos algum desconforto, uma coisa boa para a criação”, afirma Domingos, no backstage, momentos antes de subirem pela última vez ao palco do The Victoria.
Lá fora, Manuel, Salvador, Domingos e Tomás têm encontro marcado com os silêncios que dão forma à sua vida e à vida de quem ouve as suas canções. Essa Subida Infinita que vamos todos enchendo de música e memórias, como pistas lançadas ao vento, na esperança de que os que nos têm a retaguarda, mesmo que por vezes se distraiam, saibam sempre onde nos encontrar.