Um mergulho no mundo encenado de Jeff Wall
Em "Jeff Wall. Time Stands Still. Fotografias, 1980–2023", patente no MAAT até setembro, o fotógrafo canadiano apresenta 63 fotografias que, mais do que contar histórias, desafiam-nos a inventá-las

Dentro de um provador de roupa do já extinto armazém de luxo Barney’s, em Nova Iorque, um vestido encarnado com flores brancas repousa num cabide.
Uma mulher, com um vestido exatamente igual ao que se encontra pendurado, veste, por cima dele, um outro, com padrão leopardo e zebra.
Veste ou despe? Entrou no provador com um vestido por cima do outro ou tenciona sair dele dessa forma? Será que estragou o vestido encarnado e quer trocá-lo, clandestinamente, sem dar explicações aos empregados? Ou pretende simplesmente roubá-lo?
“A única coisa que se sabe é que, a certa altura, um dos vestidos esteve por cima do outro”, afirma Jeff Wall, autor da fotografia, com um sorriso enigmático.
A imagem, uma das 63 mostradas na exposição Jeff Wall – Time Stands Still. Fotografias, 1980 – 2023, que se inaugurou no MAAT a 22 de abril, é a súmula perfeita daquilo que podemos encontrar um pouco por toda a obra do fotógrafo canadiano: uma representação do mundo real que, por ser encenada, contém em si todas as histórias que formos capazes de inventar.
Como se, ao pintar quadros fotográficos do dia-a-dia, o artista quisesse dar-nos um “empurrão” para pormos em marcha a nossa própria criatividade, criarmos mundos a partir do Mundo.
É que, de facto, todos os elementos representados são reais - a história, os lugares, as pessoas - mas se Wall não os tivesse unido numa mesma fotografia, provavelmente jamais se teriam cruzado uns com os outros.
Tal como acontece em muitas das pinturas de grandes mestres, como Velázquez e Ticiano, cuja obra, além de fascinar Jeff Wall, levou-o à sua imagem de marca: composições semelhantes a pinturas a óleo criadas a partir de um medium contemporâneo, que é como quem diz, obras que se encontram entre uma tela seiscentista e um outdoor publicitário.
É precisamente a partir de tal imagem de marca que começa a viagem que Wall e o curador Sérgio Mah propõem através deste mundo onde as cores são mais intensas e as texturas mais plásticas.
Imagens de luz
Mergulhada na penumbra, a Sala Oval do MAAT assemelha uma enorme prova de negativos à escala humana, na qual 27 fotografias, feitas como transparências coloridas retroiluminadas, apresentadas em caixas de luz, trazem para dentro do museu referências da literatura e “citações” de luz e composição de grandes obras da História da Arte, constroem instantes acidentais, cristalizam o tempo e apresentam infinitas narrativas de desenlaces desconhecidos.
“Porque se encontra um homem deitado debaixo da mesa em Insomnia? A quem se dirige o gesto de A man with a rifle? […] O que desencadeou A Fight on the Sidewalk?”, pergunta-se Ségio Mah na folha de sala.
Cada um terá a sua própria resposta, consoante olhe mais ou menos tempo, com mais ou menos imaginação, para cada uma das imagens.
Em Adrian Walker, por exemplo, que retrata o momento em que um aluno de Jeff Wall pega na folha de papel para comparar o resultado de um desenho a sépia, de um braço, com o braço humano que lhe serviu de modelo, haverá talvez quem pressinta uma referência à obra conceptual One and Three Chairs, de Joseph Kosuth.
Já o homem sentado numa cadeira sob centenas de lâmpadas, em After “Invisible Man”, é, para os apaixonados de literatura, o negro que, no romance homónimo de Ralph Ellison, pendura 1369 lâmpadas no teto do “buraco” onde vive, de modo a iluminar o seu mundo e sentir-se menos invisível. Mas poderá ser tantas outras coisas, sobretudo para os que já sentiram, nas suas vidas, a mesma urgência em serem vistos.
A luz com que Jeff Wall modela as formas, bem como os tons de azul e verde usados nas obras expostas nesta sala dão ao conjunto o aspeto coeso.
“Há uma espécie de sensação decorativa. Como se tivéssemos criado aqui um conjunto que, apenas enquanto isso mesmo, é interessante de ver e torna a sala também mais interessante”, comenta o artista, que se sente “extremamente satisfeito com isso”.
Sublinhando que não faz propriamente séries de obras, Wall explica que, em contexto de exposição, costuma organizá-las segundo critérios como a cor, a técnica ou os temas abordados.
“Toda a exposição é feita destas pequenas relações. Gosto de arranjar as fotografias como se fossem flores numa jarra, para que fiquem bem umas ao pé das outras”.
Contrastes de cor e narrativas
As “pequenas relações” que unem o conjunto de obras expostas na sala seguinte são, não só a técnica - impressão tradicional a preto e branco e colorida, a jato de tinta – mas também uma certa unidade temática.
Do homem que levanta pesos num ginásio, em Weightlifter, à banda que atua para uma plateia quase vazia, em Band & crowd, passando pelos dois adolescentes que lutam em Boxing, os espetáculos retratados em Actor in two roles, ou a aula de História do vestuário em Ivan Sayers, todos partilham uma caráter performativo. Mostram-se ao público, ao artista, uns aos outros.
Pouco mais à frente, uma imagem a preto e branco de um armazém de frio de uma fábrica contrasta abertamente com as anteriores.
“Gosto deste contraponto entre uma zona cheia de calor, ação e luz e outra que é basicamente o oposto. Além disso, é importante referir que muitas das minhas fotografias são simplesmente documentais. Há muitas outras coisas, quando preciso delas, mas dou-me por satisfeito em tirar uma fotografia como qualquer outro fotógrafo faria, quando as condições são as certas”.
No caso de Cold Storage, a fotografia do armazém de frio, as condições certas foram o facto de Wall ter tido acesso ao interior de um edifício que, não só lhe despertou a curiosidade como também lhe permitiu registar um lugar “muito pouco visto em fotografias”.
O mesmo tom, mais próximo do documental, encontra-se também presente em Echo Park, uma vista do bairro homónimo de Los Angeles, e em Daybreak, que ilustra uma série de pessoas a dormir num campo de azeitona em Israel.
Fotografar a memória
De forma mais ou menos documental, aquilo que Jeff Wall acaba por fazer é documentar a realidade como se recorda dela.
É o seu mundo aquele que nos mostra nas paredes do MAAT, os momentos que, por alguma razão desconhecida, numa determinada altura da vida, marcaram-no ao ponto de sentir a necessidade de misturá-los uns com os outros, encená-los e reproduzi-los juntos, como que para eternizar um mundo existente apenas dentro de si, onde acontece tudo, em todo o lado, ao mesmo tempo.
Exemplo disso é In the Legion, onde vemos um homem dar um mortal para trás, dentro da Royal Canadian Legion, uma associação para ex polícias e militares.
“Provavelmente, vi pessoas fazerem isto na praia ou nas cordas que os jovens esticam entre as árvores, mas como queria fotografar um mortal para trás que surgisse de uma necessidade impulsiva, inesperada, repentina, quis fazê-lo num bar, uma vez que o álcool, muito provavelmente, teria tido alguma influência no surgimento dessa necessidade”, explica o artista.
A recrear as memórias do fotógrafo não são atores, mas pessoas banais, sem conhecimentos ou prática de representação. “É por essa razão que não considero aquilo que faço cinema”, sublinha o fotógrafo.
“Não preciso de atores, preciso de pessoas que consigam encontrar certas maneiras de se comportarem. É difícil de explicar e é diferente todas as vezes”.
Da mesma forma, o artista também recusa a ideia de que quer apenas fazer imagens de enorme escala. “O que me interessa não é fazer fotografias de grandes escalas. O que me interessa é fazê-las do tamanho certo para aquilo que cada uma representa”, sublinha, enquanto se aproxima do tríptico The Gardens, a maior obra apresentada na exposição.
As três enormes fotografias, que ilustram os jardins da Villa Silvio Pellico, em Moncalieri, nos arredores de Turim, contrastam, pelo verde luxuriante e as sombras das árvores, com o caráter inóspito das paisagens de Hillside Sicily e Hillside near Ragusa, do outro lado da sala, nas quais a aridez do terreno e a luz do Sol parecem arranhar e fazer arder a pele de quem as olha.
E de novo, tal como com acontecera com a imagem da mulher no provador de roupa, percebemos que as 63 imagens que Jeff Wall nos mostra no MAAT, seja em caixas de luz, impressas em jato de tinta, no interior de bares, casas e teatros, em jardins, montanhas ou nas ruas de uma cidade, são, antes de mais nada, uma representação do mundo real que, por ser encenada, contém em si todas as histórias que formos capazes de inventar.